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Juíza Federal de Magé leva o primeiro lugar em concurso do CNJ com sentença antidiscriminatória a favor de mulher militar transgênero

Mulher branca em trajes formais recebe uma placa prateada das maos de um homem branco de terno. Eles estão sobre um palco de madeira
Ana Carolina Vieira de Carvalho venceu na categoria “Direitos da População Lésbica, Gay, Bissexual, Transexuais, Queer, Intersexo e Assexuais – LGBTQIA+”

Em abril deste ano, a juíza federal Ana Carolina Vieira de Carvalho conquistou o primeiro lugar no Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos, na categoria “Direitos da População Lésbica, Gay, Bissexual, Transexuais, Queer, Intersexo e Assexuais – LGBTQIA+”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

 

“A identidade de gênero relaciona-se, em última análise, com a construção individual, isto é, através de uma decisão livre e autônoma acerca da forma como o indivíduo se reconhece. (...) a ausência de reconhecimento do direito à identidade de gênero das pessoas transgênero contribui para reforçar e perpetuar comportamentos discriminatórios contra elas”. Estes são trechos da sentença proferida pela magistrada da 1ª Vara Federal de Magé.

 

O prêmio foi concedido durante o Seminário Dignidade Humana – A Promoção dos Direitos Humanos e a Proteção às Diversidades e Vulnerabilidades nas Políticas e Programas do CNJ, realizado em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), nos dias 18 e 19/04. Além da premiação, Ana Carolina Vieira de Carvalho foi uma das palestrantes do painel “Direitos da População LGBTQIA+”, que teve transmissão ao vivo pelo Youtube.

 

Outros dois juízes da JFRJ também participaram do Seminário promovido pelo CNJ. A juíza federal da 5ª Vara Federal Criminal, Adriana Alves dos Santos Cruz, e o juiz federal da 8ª Vara Federal Criminal, Frederico Montedonio Rego, integraram o painel “Direitos das Pessoas Privadas de Liberdade”, que também foi transmitido pela plataforma.

 

Transexualidade não é doença

 

Ao longo de 23 páginas, Ana Carolina detalha, ponto a ponto, o caso de uma mulher transgênero e militar da Marinha do Brasil, que passou a ser considerada incapaz para o serviço assim que iniciou o procedimento hormonal de transicionamento de gênero. No processo, a autora relata que a Marinha se recusou a fornecê-la a identidade funcional com seu nome social, assim como a obrigava a usar o uniforme masculino e a cortar os cabelos, entre outras violências. A instituição militar chegou, ainda, a impedi-la de participar do exame de admissão para promoção a sargento, mesmo com laudos médicos atestando sua aptidão física e psicológica.

 

A sentença, considerada um exemplo de efetivação dos Direitos Humanos da população LGBTQIA+, exigiu da magistrada bastante pesquisa e aprofundamento na temática. “Acredito que o desafio tenha sido o de pesquisar e estudar o entendimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores e também da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além da forma como a doutrina especializada trata o tema”, afirmou Ana Carolina.

 

Para a juíza, quando parte da sociedade ainda considera a transexualidade como uma doença e, nesse caso da Marinha, até como uma doença incapacitante, o Judiciário passa a exercer um papel vital para proteger as diversidades, não perpetuando os estigmas já sofridos pela população LGBTQIA+. “O princípio da dignidade humana aplica-se a todos, independentemente da identidade de gênero ou da forma como a pessoa expressa a sua sexualidade. Vedar direitos a essas pessoas, sob argumentos relacionados à moralidade, é ofender a laicidade do estado e perpetuar, ao fim e ao cabo, a discriminação que a comunidade LGBTQIA+ sofre em nossa sociedade”, disse.

 

“A expectativa de vida dessa população é de 35 anos”

 

Segundo um levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), divulgado em janeiro deste ano, o Brasil continua sendo – pelo 14º ano consecutivo – o país com mais mortes de pessoas transgênero no mundo. No caso específico de mulheres trans e travestis, as chances de serem assassinadas - se comparado a homens transgênero e pessoas não-binárias - são de até 38 vezes mais.

 

Além de maior propensão à sofrerem violência letal, as pessoas transgênero são as que mais enfrentam resistência para terem seus direitos básicos efetivados. “Há uma violação de todos os seus direitos de forma rotineira em nossa sociedade: do direito à identificação social, ao direito ao emprego e ao estudo. Indicativo dessa situação de vulnerabilidade extrema é que a expectativa de vida dessa população é de 35 anos no nosso país”, afirmou Ana Carolina.

 

Ainda de acordo com a magistrada, o enfrentamento da discriminação contra pessoas LGBTQIA+ encabeçado pelas cortes superiores pode provocar mudanças em toda a sociedade. “A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Conselho Nacional de Justiça, com vistas a difundir as decisões que declaram os direitos dessa população, mostra-se um passo importante para o reconhecimento dos mesmos não apenas no âmbito do Poder Judiciário, mas para a sociedade como um todo”, declarou.